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Rubem Alves

Rubem Alves

O novo professor, Leônidas Sobrinho Porto, entrou na sala sorridente e começou: – “Temos dois problemas preliminares para resolver. Primeiro, essa caderneta onde deverei registrar sua presença. Quero dizer que todos vocês já têm 100% de presença. Se não quiserem assistir às minhas aulas, não precisam. Eu lhes darei presença. Segundo: as provas que vocês terão de fazer para passar de ano. Quero dizer que não haverá provas. Todos vocês já passaram de ano. Resolvidas essas duas questões preliminares irrelevantes, podemos nos dedicar ao que importa: literatura…”.

Aí ele começou a falar coisas que nunca tínhamos ouvido. A literatura se encarnou nele. Ele ficou ‘possuí­do’ e começou a viver as grandes obras literárias bem ali, na nossa frente. Não pediu que comprássemos livros ou que lêssemos. Sabia que não sabíamos ler; só sabíamos juntar letras… Não tínhamos o poder para surfar sobre as palavras. Se fôssemos ler, a leitura seria tão mal feita que acabaríamos por detestar o que líamos. E ele, possuído, ia tornando vivas as obras literárias. Ficamos seduzidos. Ninguém faltava às suas aulas. Ninguém falava. Ao ouvi-lo, éramos tocados por sua autoridade mansa e maravilhosa.

Como professor e funcionário de um colégio, tinha autoridade para nos obrigar. Mas sabia que há coisas que não podem ser feitas com a autoridade de fora. As coisas que têm a ver com a alma só podem ser feitas com a autoridade de dentro. Bachelard escreveu em algum lugar que só se convence despertando os sonhos fundamentais. O professor Leônidas nos fazia entrar no mundo dos sonhos. Não precisava valer-se da autoridade exterior. Sua autoridade brotava de dentro e nós a reconhecíamos.

Fontes:
“A autoridade de dentro” por Rubem Alves – Revista Educação
http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/142/artigo234538-1.asp

“Sem notas e sem freqüência” por Rubem Alves – Revista Educação
http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/107/artigo233821-1.asp